sábado, 26 de janeiro de 2013

Em memória de um amigo alcoólatra


Vivo de catar coisas na rua pra vender e fazer dinheiro pra pinga. Vida, família, amigos são palavras sem sentido em um dicionário que fechei faz tempo e que será reaberto algum dia, noutra dimensão, talvez, por aquilo que sobrar de mim. Porque, pela misericórdia divina, alguma coisa sempre sobra para que a trajetória da eternidade nunca cesse. Não faço julgamento de mim mesmo porque não estou em condição de julgar. Já não sou uma consciência metida num corpo de carne. Sou apenas um corpo de carne que vive em função dessa desgraça que é o álcool. Não culpo ninguém pela minha situação. Não sou vítima. Não sou alguém que foi abandonado por tudo e por todos. Não há uma justificativa pra minha condição. Sou um filho de Deus que se perdeu no caminho. Só isso. Nada mais. Sou alguém de quem todo mundo sente pena, exceto eu mesmo. E assim vou destruindo meu corpo sem dó nem piedade, enquanto a morte não vem me buscar. Muitos companheiros se foram em situação lastimável. Sei de um que morreu queimado. De tão bêbado que estava, perdeu o sentido, enquanto o cigarro aceso tratava de colocar ponto final em tudo. O fogo começou pela barba, depois se alastrou rápido pelo corpo que nem sangue tinha mais. Álcool é o que corria pelas veias. Sei que meu fim não será muito diferente, mas no momento não estou em condição de me preocupar com o futuro. O passado pouco importa, o presente é o que vai rolando. Estou numa etapa em que nada disso tem qualquer significado. Sou só eu e o vício. Só eu e aquilo em que me tornei. Alguns tentam me trazer de volta para a realidade, mas tudo que vejo e ouço são vultos e vozes abafadas pela falta de qualquer senso de realidade. Já não sou pai, avô, tio, irmão. Já não sei o que é certo e errado. Meu filho me bate na cara e pergunta se não tenho vergonha. Olho pra ele e vejo muito amor, muito carinho. Ouço seu choro quando está saindo de casa. Mas nem isso me faz reagir. Quero correr até ele, gritar seu nome, me atirar em seus braços e prometer que nunca mais bebo, mas não consigo. Sou o traste humano que às 5 da manhã sai desesperado puxando carroça com descartáveis para levantar o da pinga. Lá pelas 8 retorno bêbado e mal consigo chegar em casa. Muitas vezes nem chego, caio no caminho, metade do corpo na calçada, metade na rua. As últimas lágrimas de culpa caíram faz tempo. Minha mãe, que não tenho mais, veio até mim em uma de minhas alucinações, lembro que chorei por horas a fio. “Filho”, dizia, tentando puxar conversa, mas eu já não podia falar. Eu tentava, mas a voz não saía. Só queria chorar, deitar a cabeça no colo de minha mãe e dormir para sempre no lugar mais seguro do mundo.  O álcool me venceu, e minha mãe se foi sabendo disso. Sei que onde quer que ela esteja pede a Deus por mim. Melhor seria me matar, mas falta coragem. Como admiro as pessoas que enfiam uma arma na cabeça e botam os miolos pra fora com um balaço. Uma abençoada bala, que põe fim em toda a agonia e manda para o inferno o pobre infeliz. Sabe, mãe, esse seu filho desgraçado usou até sua doença pra descolar o da pinga. Muitas vezes ia na casa de um amigo pedir dinheiro pra levar alguma coisa diferente pra senhora comer no hospital. Meu amigo, bom de coração, me ajudava, mas a senhora nem podia mais comer. O dinheiro era pra pinga. Eu ia pro buteco, enchia a cara, caía pelas ruas e horas depois acordava. Foi assim por vários dias até que a senhora morreu. Desde então estou aqui com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar, como diz certa canção. Vem, morte, vem me devolver a lucidez, vem me devolver a vida.

Este breve relato é um tributo a um amigo que se foi, consumido pelo álcool. Me lembro dele puxando o carrinho com objetos para reciclagem, fazendo zig-zag nas ruas de tão bêbado. Sou o amigo que dava dinheiro a ele pra “cuidar melhor de sua mãe no hospital”. No fundo eu sabia que o dinheiro era para a pinga. Depois soube que ele havia morrido queimado em sua própria casa, da forma mais trágica possível. Sei que este texto não muda nada. Sei que meu amigo não foi o primeiro nem será o último que o álcool levará, mas me senti no dever de escrevê-lo.

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